O QUILOMBO
MANOEL CONGO
“Não adianta os martírios
Que impõe o dominador,
O mundo muda mais rápido
Nos sentimentos de dor...
Um dia, decerto, um dia
Há de surgir a utopia
Que Manoel Congo sonhou.”
Para ter sob controle
O poder firme, constante,
Em qualquer país ou época
E de forma alienante,
Quem escreve sua história
Sempre tão contraditória
É a classe dominante.
Está nos livros didáticos,
Nos romances, na poesia,
Nos jornais, revistas, rádios,
Nas tevês, por todo dia
O clarão dos seus farois
A mostrar falsos herois
Que serviram à tirania.
A história verdadeira
De Canudos, Caldeirão,
De Zumbi, de Contestado,
Pau de Colher, essa então...
Quando não foi deturpada
Foi às pressas empurrada
Pra baixo do tapetão.
É grande o descaramento
Do seu historiador
Ao mostrar a independência
E aquele imperador
Cheio de pompa e heroismo,
Quando não passa, em cinismo,
De golpista e de opressor.
Independência queria
Com república, muito jus,
O nosso povo ao clamar
Sob o peso de uma cruz
Seu ideal verdadeiro
Dum brasí bem brasilêro
Como disse Zé da Luz.
Como poeta do povo
Em não posso me calar,
Da caneta faço espada
E parando pra pensar
Vou correndo pra compor
Para o tempo recompor
Que vivi a ignorar.
Manoel Congo é o primeiro
No tapete a se mexer,
A sua insatisfação
Dava bem pra perceber,
Sendo da África arrancado
Se mostrou inconformado
Com as elites do poder.
Consciente da injustiça
Por viver na escravidão,
Conhecendo a violência
Do chicote e do grilhão,
Para a revolta esperada
Tinha a luta sustentada
Na sua insatisfação.
Exercia Manoel Congo
O ofício de ferreiro,
Era menos maltratado
Pelo senhor fazendeiro,
Mas, nem por isso, deixou
De levar a sua dor
Às vítimas do cativeiro.
Na África livre, e hoje
Entre a senzala e a morte,
Manoel Congo sofria
Essa mudança de sorte...
Mais, ainda, em hora dada
Quando era acompanhada
De canga, tronco e chicote.
Para os escravocratas
Era aquilo natural,
Para eles, os escravos
Já nasceram para o mal,
Mas, não eles...por mandar,
Nasceram pra desfrutar
O poder e o capital.
A igreja tudo via
Mas, indiferente à dor
Fazia como o ditado:
“Ouvidos de mercador”,
E entre risos e prantos
Ficava com os encantos
Das moedas do opressor.
Por isso que Castro Alves
Desejou do fato atroz
Ter um raio em cada verso
Pra na fronte do algoz
Deixar marcada a maldade
Pela frase, com vontade,
De “Maldição Sobre Vós”.
Também se deu esse clima
Na região de Vassouras,
Lá no Rio de Janeiro
De terras tão promissoras
Onde, tirados dos lares,
Os escravos aos milhares
Foram postos nas lavouras.
Em Paty do Alferes-Vassouras
Havia um escravocrata
Dono de várias fazendas
Com muita lavoura e mata,
Era Manoel Xavier
E por ter muito café
Fazia parte da nata.
Tinha Manoel Xavier
Mais de trezentos escravos
Entre eles Manoel Congo,
Dos africanos mais bravos,
Que embora agrado houvesse
Não fazia qualquer prece,
Não aceitava conchavos.
A pujança do café
Atingia a região,
Ia aos pouco se formando
Dessa cultura o barão,
Sua produtividade,
Seu café de qualidade
Engrandecia a nação.
No entanto, esse eldorado
Não nascia, assim, com graça,
Vinha cheio de sujeira,
De injustiça e desgraça;
Chegou, sim, meio ao tormento
A custo do sofrimento
E humilhação de uma raça.
A riqueza parecia,
Pela desumanidade,
Justificar todos crimes
De uma tal sociedade
Totalmente, desregrada
Que tinha como sagrada
Tão-só a prosperidade.
Pelo seu escravocrata
Que no lucro tinha fé,
O Brasil passava a ser
O país que mais até,
Sem o senso de razão,
Importava a escravidão
Para exportar o café.
Traficantes de escravos,
Por dinheiro, tresloucados,
O imenso continente
Invadiam bem armados
E transformavam, insanos,
Os guerreiros africanos
Em valores de mercado.
Com a febre do café
Na região de Vassouras
Era a mão de obra posta
A serviço das lavouras
E, assim, com avareza,
Se incrementava a riqueza
Das classes possuidoras.
Postos em navios negreiros
Só com direito a penar,
Era tanto o sofrimento
Que aqui vale lembrar:
Mais da metade morria
Somente na travessia
Que se fazia do mar.
Entre seus sobreviventes,
Vassouras mais empregava,
Principalmente, Paty
Do Alferes, que ficava,
Por conta desse tesouro,
Como o grande escoadouro
Dessa mão de obra escrava.
De vinte mil habitantes
Que havia ali, então,
Quatorze mil eram parte
Da cruel escravidão;
Dos que perderam seus ares,
A liberdade, seus lares,
Esperanças e razão.
O capitão-mor Manoel
Xavier, o fazendeiro
Dono de léguas de terra
Da baixada ao tabuleiro
Reprimia seus escravos
Com dobrados desagravos
De jagunço e pistoleiro.
Era comum o mal uso
Da chibata e do grilhão,
Da prisão no tronco e canga
Que levava à exaustão;
Da arma própria de corte,
Da pancada até a morte
Que servisse de lição.
Certa vez um alforriado
Denunciou a um juiz
De cinco escravos que foram
Mortos como o dono quis,
Depois em vala lançados
Foram todos enterrados
Pelos seus jagunços vis.
O juiz investigou
Foi o fato constatado,
Mas, os jurados acharam
Que o prejuízo dado
Para o seu proprietário
Já era, em si, um calvário
Sendo, então, justificado.
D’outra feita um capataz
Sem ter a menor razão
Um escravo assassinou,
Pôs de um tiro no chão
Porque a vítima se ia
Sem ter carta de alforria,
Sem ter qualquer permissão.
Também, lá na Maravilha
Dos escravos, outro havia
Gostado de uma escrava
Da Fazenda Freguesia,
Porém, na escravatura
Esse tipo de aventura
Sua lei não permitia.
Cabia ao escravocrata
A escolha dos casais
Para que filhos nascessem
Das relações sexuais,
Sadios, fortes, dispostos
Quando
assumissem seus postos
Na luta dos cafezais.
E Camilo Sapateiro,
O escravo apaixonado
Quando ia pra fazenda
Visitar seu amor dado,
Ele que queria a paz
Pelo cruel capataz
Foi brutal assassinado.
Sentiu, então, Manoel Congo
Muita gota a se somar,
Sendo essa a gota dágua
Que chegou a transbordar,
O delito rude, insano,
Levou o escravo africano,
Com isso, a se rebelar.
Porém, o líder marcado
Por sobrenome da terra
Na qual nasceu homem livre
A correr livre na serra,
Com paciência que tinha
Preparando-se já vinha
Para tal futura guerra.
Esse frio assassinato
Seguido sem punição
Levou a todos revolta
E foi tanta a reação
Que tentaram logo mais
Linchar o vil capataz
Sendo impedidos, então.
Mas, à noite os escravos
Da Fazenda Freguesia
Já haviam decidido
A fugir em romaria,
Sair com fé e vontade
Em busca da liberdade
Que sonhavam todo dia.
Foram as portas da senzala,
Que estavam de cadeado,
Arrombadas, prontamente,
E até as do sobrado...
E em cenas tão poéticas
Todas escravas domésticas
Fugiam para o gramado.
Pelas janelas desciam
Dispostas, encorajadas,
Porém, como eram altas
Puseram várias escadas
E de súbito, no final,
Da Casa Grande, em geral
Foram todas libertadas.
Houve ainda reação
Tendo morrido um feitor,
Um capataz assustado
Em escapar procurou
E parecendo ter asa
Voou pra cima da casa
E quietinho lá ficou.
Manoel Congo com cuidado
Muitos escravos juntou,
Recolhidas várias armas,
Mantimento e cobertor,
Passaram, seguindo a trilha,
Na Fazenda Maravilha
E já outros libertou.
Sempre munidos de armas
De fogo e de munição,
De machado, roçadeira,
Peixeira, foice e facão,
Seguiram todos em frente
Como buscando, evidente,
A terra da promissão.
Outros escravos sabendo
D’outras fazendas fugiam,
Pegavam mulher e filhos
E o mesmo rumo seguiam...
Era tão grande a vontade
De viver em liberdade
Que de nada eles temiam.
Alcançaram a floresta
Lá de Santa Catarina,
Na Serra Estrela, dali,
Como cumprindo uma sina,
Seguiriam pra Taquara,
Local que teriam para
Um quilombo na surdina.
Manoel Congo, a essa altura
Como rei foi coroado
E Marianna Crioula
Rainha de muito agrado,
Ela que dizia à classe:
“Morrer, sim; nunca
entregar-se”
Para ser escravizado.
Já sabendo Manoel Congo
Quanto difícil seria
Manter um quilombo livre
Dos golpes da tirania,
Ele, então, mobilizava
Atrair mais gente escrava
Para a nova moradia.
Todas as noites saiam
E invadiam fazendas,
Libertavam seus irmãos
E armas para a contenda,
Era tão grande o sucesso
Da empreita com excesso
Que eles viam como prenda.
Vendo o
quilombo a crescer,
Bem como, se
organizar,
Começaram os
fazendeiros
Logo a se
mobilizar
E cobraram com
urgência
Do poder a
providência
Pra tudo
recuperar.
“Quilombo de
Manoel Congo”
É como eles
chamavam,
Com cerca de
quatrocentos
Ex-escravos já
contava,
E a tendência
exemplar
D’outros
quilombos criar
Pelo que se
propagava.
O poder
preocupado
Com os fatos
corriqueiros
Tomou suas
providências,
Atendeu os
fazendeiros,
Numa medida de
urgência
Tomou toda
providência,
Acudiu o
desespero.
E um batalhão de soldados
No total cento e sessenta
Com a ordem de usar
A forma mais truculenta
Com ações mais repressoras,
Partia para Vassouras
Cheia de orgulho e opulenta.
Ali foram recebidos
Por fazendeiro e barão
Do café e do açúcar
Com a devida louvação
Pois, lá se priorizava
Essa mão de obra escrava
Pra manter a produção.
Então, todo aquele exército
Numa missão assassina
Sob aplausos e discursos
Da burguesia ferina
Partia como em festa
Para a vistosa floresta
Lá de Santa Catarina.
Aguardavam os quilombolas
Esses soldados do mal
Pra na “guerra de guerrilha”
Em uma luta desigual
Enfrentar e até vencer
Todo aparato, o poder,
Da Guarda Nacional.
Esta, já perto, só via
Muita casa abandonada,
Mais na frente escutavam
Barulho de machadada,
E pensando com esperteza
Em pegá-los de surpresa,
Foram seguindo a estrada.
Tanto a casa abandonada
Como o machado zunindo
Eram uma estratégia
Do quilombola fingindo
Estar com medo a fugir,
Ou um trabalho a cumprir
Para, na isca, atraindo.
Seguindo as trilhas abertas
Por quilombolas, então,
Não percebiam a porta
Levantada do alçapão
E com seu ar opressor
Partiam pra recompor
As perdas da escravidão.
Ao chegarem num local
Propício para emboscada
Os quilombolas surgiram
E numa brusca tacada
De tiro, foice e facão,
Atacaram o batalhão
Que bateu em retirada.
Mas, antes vários soldados
Tombaram ali pelo chão,
Muitos outros desertaram
O seu próprio batalhão,
Assim, vibrou toda classe
Como se consolidasse
Tal, qual, a libertação.
Manoel Congo teve à frente
De todo seu movimento,
Foi, inclusive, o primeiro
A usar do armamento,
E enquanto ele lutava,
Atirava e orientava
Do grupo o procedimento.
De batalha já vencida
Tratou, pois, de reunir
O quilombola e alertar
Do que estava por vir,
Perante a aristocracia
Controlava a euforia
Dos quilombolas dali.
Toda classe dominante
Já vinha de prontidão,
Tinha medo da revolta
Das vítimas da escravidão,
Para tal se preparava
Ante a insurreição escrava
Prevista na região.
Da Bahia conhecia
A revolta dos malês,
O voraz Lucas da Feira
A vingança e malvadez,
E a Revolta da Carranca
Onde muita gente branca
Pagou pela mesquinhez.
Também, os brancos temiam
Uma tal conspiração
De matar todos aqueles
Algozes da escravidão
E usar, bem à vontade,
Esposa e propriedade
Com a mesma humilhação.
Um jogo de vida e morte
O escravocrata implantou,
O combate aos insurretos
Só se dava com terror,
Quando não morte matada,
Consistia em chicotada
Por ordens do seu senhor.
O avanço da rebeldia
Visto como um impropério,
E o ataque frustrado
Que se deu sem ter critério,
Na visão dos seus olheiros,
Mexiam com os fazendeiros
E ameaçavam o império.
Em quatorze de novembro
Do ano mil e oitocentos
E trinta e oito, o governo
Imperial, truculento,
Enviaria, brutal,
Sua Guarda Nacional
Com poderoso armamento.
Esse exército comandava
Com grande selvageria
Luiz Alves Lima e Silva
Que bem mais tarde teria,
Por massacres, com rigor,
O título compensador
De o “Duque de Caxias”.
Ele chegando em
Vassouras
Juntou-se à guarda local,
Capatazes das fazendas,
Jagunços do cafezal,
Indo dali ao quilombo
Para promover o tombo
Do quilombola, afinal.
Ali chegando cercaram
Com tal força desmedida,
Mas, ainda os quilombolas
Resistiram à investida,
Até que sem munição,
Só de foice e de facão,
Já não viam mais saída.
A Rainha Damiana
Crioula, no louco enlace
Lutava de todas formas,
Com tudo que encontrasse,
E cheia de sonho e vida
Repetia enfurecida:
Morrer, sim; nunca entregar-se.
Ao final dessa batalha
Jaz ali mortos no chão
Dezenas de quilombolas
Que lutavam, com razão
E amor, a todo custo,
Por um mundo humano, justo,
Sem sombras da escravidão.
Uns escravos conseguiram
Fugir pelos tabuleiros,
Porém, muitos deles foram
Já direto aos cativeiros...
Com Manoel Congo à frente
Outros líderes na corrente
Feitos são prisioneiros.
Não foi maior o massacre
Porque o seu fazendeiro
Perderia o seu escravo
Que lhe custou bom dinheiro;
Assim, o barão pensava,
Também, nisso acreditava
O império brasileiro.
Levados para Vassouras
Foram lá mesmo julgados,
Mas, somente Manoel Congo
Foi à morte condenado,
Pois, com seu idealismo
Se sentia o escravismo
Inseguro, ameaçado.
Dos dezesseis quilombolas
Listados pra julgamento
Foram dois absolvidos,
Tendo treze o sofrimento
De seiscentas e cinqüenta
Chibatadas violentas
Por dez dias de tormento.
Assim, em três de setembro
Do ano posterior
Foi Manoel Congo enforcado
Nas leis do dominador,
Daquele que, por vanglória,
Dita as leis, escreve a história
Na cartilha do opressor.
Porém, sempre que um mártir
Tomba às garras duma fera,
Toda história se transforma,
Se sucede a primavera,
De repente, num segundo,
Olhando bem, já o mundo
Não é o mesmo que era.
Só o fato que ele venha
A ser lido por alguém,
Conhecendo suas virtudes,
E os seus atos de bem;
Só pelo saber que fica,
Esse alguém, se modifica
E o mundo muda também.
Não adianta os martírios
Que impõe o dominador,
O mundo muda mais rápido
Nos sentimentos de dor...
Um dia, decerto, um dia
Há de surgir a utopia
Que Manoel Congo sonhou.
Memorial de Manuel Congo,
construído no local onde
ele foi enforcado. Vassouras, Rio de Janeiro.
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